terça-feira, 23 de junho de 2015

Com venda nos olhos e meia arrastão

Um filósofo francês de nome inglês falava do exercício que é tentar "ver" como um bebê. Um bebê, dizia ele, não sabe dos signos, dos símbolos, dos significados: por isso, vê de verdade, a forma, a luz que incide sobre o objeto, as diferentes cores, os ângulos que mudam a forma, o volume. Sente a textura com a mão, bota na boca e sente o gosto. Bebês "sabem" os objetos muito mais do que os adultos, que categorizam instantaneamente - e, por isso, não veem de verdade.

Tenho vontade de propor algo similar para textos: uma venda, um rabisco em cima do nome de quem fala. Assim, quem sabe, se prestaria atenção no que se diz. Cada vez mais, me dá a impressão que as pessoas tomam posição a respeito do que é dito, não pelo conteúdo, e sim pela identificação de quem diz.

É fulano? É bom. É beltrana? É ruim. O porquê ninguém sabe e ninguém quer saber: é fulana, é beltrano, isso basta e justifica.

Parece fácil, mas é enganoso e perigoso. O contrário do que deveria ser.

Por isso, a proposta: uma venda. Um Liquid Paper. Algo que esconda quem é. Algo como a troca entre atrizes e pessoas reais no filme "Jogo de Cena", do Coutinho. Algo que obrigue a prestar atenção de verdade, porque a gente ainda não sabe como vai votar. Se a gente não sabe quem diz, como pode concordar ou discordar a princípio?

Desconfio que essa sugestão ia encontrar muita resistência. É tão mais prático concordar com nomes. Discordar de gente. "Ah, é fulano, ele fez isso e aquilo" - logo, não pode dizer nada que preste.

Não?

Tem certeza?
Escuta de venda.
Vou pedir para aquele menino que está passando ali ler pra você.

Ei! Psiu! Menino! Sim, você. Tem um tempinho pra ler um texto aqui? 


P.S.

A meia arrastão botei só porque fiquei a fim. Gosto de meia arrastão.



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2 comentários:

  1. Me fez lembrar de um comentário do escritor Daniel Sada sobre Juan Rulfo, dizendo que Rulfo era capaz de abrir um livro e começar a ler com a mesma atenção e espírito crítico fosse o autor um monstro sagrado [o que será isso, hein?] ou um ilustre desconhecido. Não é por menos que os faraós das letras mexicanas não gostavam de Rulfo...

    O que não falta é gente que, como dizia a Clarice Lispector [mais ou menos], não bebe o vinho mas sim o seu nome.

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    1. Eita, que visita ilustre! E só vi agora, arrumando os e-mails atrasados. Pois então.... por isso é que o Rulfo era o Rulfo, provavelmente. E adorei a citação de Clarice! Hahaha o que tem de gente que bebe o nome.... :)

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